Olívia Santana(*)
Olívia SantanaPara abordar a problemática da formação educacional da população negra brasileira frente aos novos desafios do mercado de trabalho, faz-se necessário considerar os nexos entre o hoje e o ontem. Pensar a atualidade considerando os antecedentes históricos de formação da sociedade brasileira, compreendendo-a no movimento na rede de relações que caracterizam o processo de colonização promovido após a invasão portuguesa e os impactos deste processo no Brasil, do mundo globalizado, não significa atribuir a discriminação contra as mulheres negras e os homens negros a uma reprodução mecânica de fatores relacionados à escravidão.
A herança cultural escravista é hoje revivida, atualizada e metamorfoseada, inclusive em sedutoras formas de consumo. Um dos artigos de exportação é a beleza e a criatividade artística do povo negro brasileiro, em formas de realização de um capitalismo selvagem que, na sua face globalizada, reelabora a diversidade, diferenças entre trabalhadores, justificando excedentes, desemprego, exclusões.
Há de se convir que o capitalismo ao superar o escravismo, jamais efetivou o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade para todo o povo, muito menos para a população negra. Nem poderia, já que traz em si o princíio de exclusão estrutural. A riqueza que resulta de um processo coletivo de produção é, inversamente, de propriedade privada ou individual, ao tempo em que a seleção por incentivo à competição e ao individualismo, necessariamente marginalizará muitas trabalhadoras e trabalhadores, sendo propício ao capitalismo justificar tal seleção em uma herança cultural ‘construída’- como a tese de ‘raça inferior’ ou raça mais afim com certas dimensões, como a proximidade com a natureza, o dançar e o cantar, e não dada ao lidar com tecnologia.
As crianças e jovens negros, incorporando o sentimento de inferioridade, referencial imposta pela ideologia racista, se entusiasmam com o que se consideraria sua natural vocação para algumas áreas até importantes, como esporte, dança e música, mais comercial. Mas, por outro lado, assumem certa ‘incapacidade’ para o que seria as áreas dos brancos, em especial de classe média, que supostamente seriam as relacionadas à tecnologia de ponta, de mais alta remuneração.
É preciso considerar que profissionalização, qualidade de serviços de educação e acessibilidade a serviços, pelo povo negro, são fundamentais mas não necessariamente suficientes para lidar com a herança atualizada e remodelada da discriminação. Inclusive porque a participação do povo negro na história do Brasil é filtrada pela interpretação dos colonizadores, o que contribui para uma educação para o mercado, para a domesticação, para uma cidadania de consumidores, mas não necessariamente para uma formação crítica e que alimente a dignidade e a auto-estima das crianças e da juventude negras.
Por outro lado, tanto o saber fazer, o saber da experiência, da comunidade, como o saber de raiz, da ancestralidade, por formas de organizar visões não necessariamente em padrões ocidentais, em éticas de competição, individualismo, apropriações, por exemplo, passam a ser qualificadas como falta e não como marcas identitárias de uma raça com o seu curso e história. Muitas vezes, até a bem intencionada lógica da inclusão pode significar assimilação, colonização.
No passado recente, a mão de obra escrava negra possibilitou emergir os pilares básicos do país e dinamizou por quase quatro séculos a expansão e o desenvolvimento econômico do Velho e do Novo Mundo. Milhões de vidas de homens e mulheres traficados de diferentes regiões africanas foram consumidos no perverso processo de acumulação de riquezas do Império Colonial Português e de demais nações que partilharam da exploração e do tráfico negreiro. Durante cinco séculos, afirmou-se a supremacia branca e a subjugação dos povos originais (os índios) e dos povos africanos.
Historicamente, criou-se uma perversa hierarquia entre pessoas de peles, sexos e culturas distintas. Pessoas que viram suas singularidades transformadas em diferenças inferiorizadas. Sobreposições de discriminações que se naturalizaram no inconsciente coletivo.
O que herdaram as novas gerações de mulheres negras e homens negros no Brasil? Herdaram somente a força e a resistência dos seus ancestrais. Os negros ainda permanecem majoritariamente na condição de filhos bastardos de uma pátria-mãe pouco gentil, sem jamais usufruir do berço esplendido reservado a um seleto grupo de eurodescendentes.
O perfil da distribuição da população brasileira, segundo posições sociais hoje, atesta que o caso do racismo, da tentativa sistemática de inferiorização do segmento populacional negro no Brasil não é uma história que ficou no passado.
Embora constituam 48% da população (IBGE, 1990), os negros correspondem a apenas 1% dos que ocupam postos estratégicos do mercado de trabalho; o salário médio pago aos trabalhadores negros equivale à metade do salário dos trabalhadores brancos; os brancos também têm 30% a mais de chances de conseguir emprego, e o dobro de chances de manter a qualidade de vida das suas famílias, do que os negros. (In: VEJA nº 25, Junho, 1998).
No início da década de 90, o IBGE/PNAD publicou uma pesquisa nacional, focalizando o rendimento médio salarial, com o corte racial e de gênero, revelando os seguintes dados: homens brancos ganhavam, em média 6,3 salários mínimos; mulheres brancas, 3,6; homens negros 2,9; mulheres negras 1,7. Sem dúvida, raça e, depois gênero ditam lugares diferenciados para homens e mulheres, negros e brancos na pirâmide social.
Vale ressaltar a absurda condição das mulheres negras que neste contexto, ocupam a base da pirâmide. A mesma pesquisa dá conta de que as mulheres negras ocupadas em atividades manuais perfazem um total de 79,4% (51% no emprego doméstico remunerado: 28,4 são lavadeiras, passadeiras, cozinheiras e serventes). Apenas 7,4% ocupam funções de secretárias, recepcionistas e revendedoras. Nas funções técnicas administrativas, científicas e artísticas, as mulheres negras ocupavam entre 5,3% a 10%.
As desigualdades permanecem mesmo considerando a realidade de uma cidade como Salvador que se insere no contexto nacional como a maior cidade negra do mundo, fora da África. Constatamos através do IBGE/PNAD 1998, num trabalho realizado pela FASE-Federação de Orgãos para a Assistência Social e Educacional que, embora representando 81,40% da população soteropolitana, os negros ostentam IDH - Índice de Desenvolvimento Humano – profundamente inferior ao dos brancos. Os dados colhidos pela pesquisa e analisados pela ONU – Organização das Nações Unidas – quando comparados à realidade social de outros países no ranking mundial mostram que os brancos ficariam na 40ª posição e os negros na 100ª (In: Jornal Apartheid Baiano, Outubro de 2000).
Nasce neste final de milênio um novo perfil de trabalhador: polivalente, capaz de exercer funções diversificadas, o que exige investimentos em profissionalização de excelência. Por que as empresas ao investirem na modernização profissional de alguns trabalhadores, comumente, marginalizam os negros? Uma das explicações seria a combinação entre especialização técnica e administração de quadros, ou seja, a importância de treinamento para a chefia. Ora, haver negros chefiando brancos poderia desestabilizar uma cultura que institucionalizou lugares hierárquicos designando aos negros posições tidas como inferiores. É parte da idiossincracia cultural brasileira, em especial, a nordestina, expressões como ‘ponha-se no seu lugar’ ou ‘sabe com quem está falando?’ afirmando a legitimação de poderes, de hierarquias por ‘superioridade’ assumida.
O quadro de resistência, protesto e recusa do quadro aqui descrito por parte de negros e negras no Brasil é complexo e antigo, passando por diversas formas, como os quilombos, as expressões da religiosidade afro-brasileira, como o candomblé, e as entidades políticas que se organizaram para combater o racismo. Algumas marcam a linha da inclusão, conquista de direitos no plano legal, ações afirmativas, programas por acesso à educação e à saúde, e combate à associação da imagem das mulheres e homens negros aos estereótipos colonizadores. Outras se movimentam mais no campo da cultura, ressaltando a contribuição singular dos povos negros para o que se assume como naturalmente brasileiro. Todas essas frentes são importantes e necessárias para a construção de uma outra história.
Há que se afirmar mais princípios que juntam frentes, tempos históricos e em especial projetos de transformações múltiplas. Entre estes princípios, deve-se destacar a articulação da luta contra o racismo, com as desigualdades de gênero, sem perder a perspectiva de classe. Alimentar o sonho de transformar o Brasil numa nação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
EVANGELISTA, Roberto. VIDA, Samuel. Desigualdades raciais. [ S.I.:S.n.,19--]
MOURA, Clóvis. Brasil raízes do protesto negro. S. P. Global, 1993, 18 p.
SALVADOR e região metropolitana. Jornal Apartheid Baiano, Salvador, 2000.
SERPA, Luíz Felipe Perret. Ciência e Historicidade. Salvador: Microarte, 1991, 113 p.
(*) Olívia Santana é pedagoga titulada pela Universidade Federal da Bahia e Coordenadora da UNEGRO, oliviasantana@uol.com.br.
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